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Glossolalia

(Texto por Angie Barbosa para Céu Isatto)

         Algumas presenças numa sala, em silêncio. Imagens de um sonho. Girassóis mutantes. Pigmentos feitos para desbotar com o tempo. Dois tabuleiros, e um jogo para o qual ninguém conhece as regras, pois ainda não foi inventado. Nada é mundano, nada é estático, nada é muito onírico para as imagens de Céu Isatto. Olhar para suas obras desafia nosso senso imediato de conexão com o que estamos vendo, não sem um bom motivo. As imagens de Céu combinam a pintura, a colagem, desenho, novas tecnologias, diferentes meios e a própria ação do tempo para produzir um espaço de absoluto gozo semiótico. A nós, basta a entrega. Céu nos convida a abandonar a rigidez da interpretação, em virtude de um novo tipo de jogo. Seu desejo de embaralhar a técnica e o significado nos faz questionar até onde é possível desobedecer a linguagem.

       Jogos interpretativos podem ser forças poderosas em um mundo onde a linguagem é tanto um modo de produzir vida e conduzir afetos quanto uma tecnologia de guerra. De certa forma, a proposta de Céu introduz um tipo importante de suspeita: nos obriga a confrontar os modos como certas tecnologias produzem nossas experiências de codificação, comunicação, decodificação e produção de sentido. O que podemos fazer quando descobrimos o poder daquilo que não está dito? Quando descobrimos que temos o poder de transformar uma casa num espaço simulado com infinitas possibilidades, um tabuleiro quadriculado numa disputa acirrada de estratégias e erros, nossos sonhos e potências imaginativas em uma ferramenta cartográfica, fazendo e desfazendo territórios, instituindo e quebrando regras, tornando as fronteiras tão potencialmente frágeis quanto potencialmente violentas.

         Ao explorar os usos do próprio corpo como interface, Céu também abre caminhos para expor os meios em que múltiplos sentidos de identidade se produzem sobre nós. Como artista trans de gênero não-binário, seu exercício de embaralhamento é também um modo de encontrar conforto na indefinição. Participar desse exercício pode nos fornecer novas perspectivas que nos ensinem a nos relacionar sem o desejo de entender e categorizar, fora da assignação de sentidos - de identidade, de gênero, do que cada corpo pode ou não fazer. Como se afetar por alguém a quem não se pode conhecer ou definir dos modos como nos acostumamos? Como sentir o que está presente sem deixar que a interpretação nos leve a enxergar o que não está? 

          Se a linguagem nos tem imposto limites, nossa relação com ela pode vir a ser um ato de travessia Na proposta de Céu, descobrimos a possibilidade de usar nossas ferramentas semióticas como uma forma de desobediência; então é isso que faremos: não teremos medo da glossolalia, falaremos quantas línguas quisermos e inventaremos nossas próprias, habitaremos cada posição de enunciação, cada possibilidade de escuta, cada perspectiva cega que se vê obrigada a recorrer a outros sentidos, cada enquadramento possível para a mesma imagem, enquanto nos aprouver, para que seja possível fazer e desfazer os limites de nossas experiências.

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